domingo, 10 de outubro de 2010

Velho

"Entre as vozes profissionais

Anónimas e a anónimos dirigidas

Vi, desta, tão pouco minha, cama

O vulto de alguém conhecido

Para quem olhei com emoção

E com a saudade de um dia

Nunca sentida em anos

Com a tristeza que o tempo me impingiu

Quase imortal

Com algumas efémeras intermitências

Que agora sinto e sei

Só morrerão comigo.


Já não vivo, já mal existo

Já nem me consigo arrastar

Sou como um cão num cárcere

Que morre se quem o acompanha

O deixar de acompanhar.

Alheio à sua vontade

Preso, dependente.

Dependência, essa

Que agora sinto e sei

Só morrerá comigo.


E o vulto, meu sangue

Mostrou seus traços

Que diferentes seriam

Não fosse eu o avô.

Não seria minha neta, então.


Neta que já dependeu dos pais, dos avós

De quem o avô depende hoje

De quem dependerão os filhos

Antes da situação se inverter.


A felicidade de outrora

Só em raros momentos

Entre choros e sofrimentos

Põe a cabeça de fora

Incorporada nos meus próximos

Que sofrem comigo

E, assim, vai sobrevivendo

Falaciosa.


O meu organismo, que a morte ataca

Desde que a primeira célula se dividiu

É hoje um quase vegetal

Velho

Que as máquinas e as drogas comprimidas

Mantêm “vivo” e triste

Adiando o irremediável sono

Que me fará esquecer.


A esperança não morre por último

Que por último morrerei eu

E a esperança já morreu.

E comigo, serão comidas pela terra

A tristeza, o sofrimento e a doença

Que me atacam, fatalmente

Atacando-se também a si.


E, agora, tenho à minha frente quem me resta

A minha neta, o meu futuro

A minha felicidade

Que agora, enchendo-me de lágrimas tristes e felizes

Sinto a reconfortante certeza:

Não morrerá comigo."


em Se a Lua Viesse de Manhã

Um comentário:

  1. "E, agora, tenho à minha frente quem me resta

    A minha neta, o meu futuro

    A minha felicidade

    Que agora, enchendo-me de lágrimas tristes e felizes

    Sinto a reconfortante certeza:

    Não morrerá comigo."


    Magnifico !

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