terça-feira, 26 de outubro de 2010

A Curta História de Eugénio

«Num Outono em que a paisagem era acinzentada e triste, em que as folhas caíam lentamente em representação do fim de uma geração no enigmático ciclo da vida, a Natureza fez com que, a muitos quilómetros de distância, uma folha castanha, torrada, pousasse levemente no chão no exacto momento – se é que isso existe – em que um menino espreitou o mundo pela primeira vez, com os sentidos tenros, as peles engelhadas, os ossos frágeis e o pescoço apertado, dando ares, aos primeiros toques e olhares, de saúde e normalidade. Abertas as portas do ventre à luz, os primeiros gritos despertaram os sentimentos mais estranhos nos que nele viam o seu futuro, os seus traços. Apoiado num braço e sentindo as carícias da mão do outro, chorou durante longos e comoventes minutos, em cima do obscuro local onde durante nove meses permanecera: o ventre da chorosa puérpera. E foi deitado na sua convexa forma maternal que encostou os dedos minúsculos, pesquisando pela saliência desconhecida de onde parecia saber que saía alimento. Com ajuda encontrou e, pela primeira vez, precisou de esforço para matar a fome e, pela primeira vez também, esta foi morta pela boca, que, molhada e branca, vagueava sentindo e sugando do mamilo materno.
Foi visto como parecido com toda a gente da família, não sendo parecido com ninguém. Recebeu ursinhos de peluche para os quais não olhava, fios e pulseiras em miniatura a que não ligava, flores cujo valor desconhecia, e entre outras coisas recebeu também um nome: Eugénio.
Os meses passaram à sua relativa velocidade e foi cedo que Eugénio começou a mostrar que a sua Gramática Universal funcionava tão bem como qualquer parte do cérebro, com menos de um ano, com a milagrosa primeira palavra, que não foi mãe ou pai para desgosto destes, nem tampouco papá ou mamã. Foi “luz”. E disse-a pela primeira vez certo dia em que chegou a casa aconchegado ao colo da jovial progenitora, apontando para o candeeiro do hall, depois do que encostou a mão à cabeça e repetiu, com um ar entre a felicidade estrema e o espanto. Algo talvez estranho que, porém, não desencadeou mais do que a habitual e histérica festa da primeira palavra. Mas ele, Eugénio, era diferente, e ninguém sabia.
Outras palavras se seguiram noutros meses que se passaram, até que, aos quatro anos, no infantário onde andava, as educadoras começaram, natural e pedagogicamente, a estranhar que ele tivesse como predilecta companhia um menino deficiente que mais não fazia que passar os dias enfiado numa cadeira de rodas, não andava senão empurrado e mal pronunciava palavra. Coisa que, em naturais e óbvias preocupações, alarmou os papás, que, com a nova já interiorizada, diziam um ao outro, alternadamente, com uma quase-indignação que lhes deixou nas caras uma expressão quase-chorosa, especialmente na da mãe: “Eu quero que o meu filho seja normal, que se dê com os outros miúdos normais”, ou “Eu não quero que o meu filho seja um desses bichos do mato anti-sociais”, ou mesmo, quando sozinhos consigo mesmo, cada um deles, “Que mal fiz eu a deus para que me saísse um anormal na rifa? Que mal fiz eu, meu deus?!”. Mas depressa se arrependiam e lhe pediam mil sinceras e sofridas desculpas. A deus, claro.
A verdade é que ele não gostava do que os outros meninos gostavam. Também não gostava do que o habitual companheiro gostava, é certo, mas gostava imenso da sua companhia, e com a sua presença se deliciava. Na verdade, eram os dois diferentes, fugindo ambos à linha da normalidade, e, talvez, quem sabe, essa curiosa característica exercesse a função magnética dos pólos opostos. O que é certo é que o menino deficiente, sem que muitos por isso dessem, ficava radiantemente feliz por ter um companheiro assíduo, mas, com esse, poucos se preocupavam.
Chamava-se Sousa Mais, esse miúdo, e na verdade não era o único companheiro de Eugénio. Este, para além de estar sempre com aquele no infantário, quando o tempo era passado em casa, tinha como companhia matemática o seu cachorro – um rafeiro gordo e pachorrento que tinha apenas mais um ano que ele e cujo nome era Partner; nome atribuído pelos pais de Eugénio cuja dívida mental à inteligência talvez se espelhasse na língua utilizada para a escolha. Mas, ignorando a parte referente à língua, o nome não podia ser mais apropriado, pois, realmente, o cão era um grande partner de Eugénio.
Tudo isto era estranho, muito estranho, aos olhos dos pais, que paulatinamente e só por falta de alternativa se iam conformando com o facto de o filho não ser de todo vulgar, de só querer estar com um cão gordo e com um deficiente… enfim. Mas Eugénio não era mais que um menino que fazia jus ao nome (parece que os seus pais davam sempre nomes apropriados), um menino de bom coração e excelente cérebro, ou péssimo, dependendo do ponto de vista. Gostava da companhia dos seus dois amigos, mas não era só a companhia por si própria que o levava a querer estar com eles. O seu objectivo, inconsciente, ou não premeditado, era estudá-los, observar as suas acções, as suas reacções, os seus movimentos e olhares. Com quatro anos, tudo o que Eugénio queria era saber como o Sousa Mais e o Partner pensavam, perceber as suas mentes.
Antes desta sensata ocupação, passava muitas noites numa dura claridade, sem fechar os olhos por um momento, pois os fantasmas da sua mente envolviam-no de pensamentos mórbidos martirizantes, sufocantes e dolorosos. Pode dizer-se que, agora, andava mais sorridente, pois as imagens passadas foram substituídas por reflexões acerca dos amigos e seus abstractos espíritos.
Como é de imaginar, não sabia ainda ler ou escrever, mas fazia apontamentos. Com as mesmas ferramentas com que as outras crianças faziam os primeiros desenhos – primeiro, riscos desprovidos de sentido, depois, casas tão tortas como encantadoras – este tentava trabalhosamente representar as imagens que a sua imaginação desenhava, ilustrando-lhe as ideias. Mesmo que o resultado ficasse longe da perfeição, normalmente funcionava, nem que fosse pela memória, por ter a noção que desenhou isto quando aquilo pensou.


Cedo se fartou de estudar o Sousa Mais: pouco fazia, pouco dizia, pouco havia para estudar. Porém, continuou a fazer-lhe companhia e não deixou, nem por um momento, de gostar dele. Era o seu melhor amigo humano. O cão, contrariamente, dava-lhe a volta aos tantos tenros neurónios, como que exercendo uma força no córtex que lhe aumentava as circunvoluções. Mas o seu interesse e a sua inteligência não bastavam para compreender o canino cérebro, embora a segunda bastasse para lhe dar a noção disto: ele sabia que, por mais que se esforçasse, nunca conseguiria perceber, na realidade, o que se passava na mente daquele cão – ou de qualquer outro – e que tudo o que ‘’descobrisse’’ não passaria de uma data de palpites e teorias infundamentadas, mesmo sem conhecer tais palavras.
Foi poucas semanas antes do seu quinto aniversário que Eugénio, quando questionado pelos pais sobre o que queria como prenda, respondeu, com uma naturalidade, para eles, aterradora: “Quero ser um cão, quero pensar como um cão.” A mãe passou dias em pleno pranto, de deprimida baixa, ouvindo as tentativas sempre fracassadas de consolo vindas do pai. Agora já quase não se desculpava, sendo as lamentações mais graves, rotineiras:
- Que fiz eu para ter um filho louco?
- Não digas isso do nosso filho, temos que lidar com o que temos e deixar de sonhar com o que gostaríamos de ter. É nosso filho, essa é a verdade, e temos que o amar como se fosse normal. Ele não tem culpa de ser assim.
- Nem eu.
Mas Eugénio não brincara, o desejo era sério: queria mesmo ser um cão por uns tempos, para poder perceber, finalmente, como pensam ou deixam de pensar eles e para, além disso, tirar umas férias dos pensamentos que o torturavam todo o santo dia, em que, sem férias, pensava demais, sempre e em tudo, não sendo só o pensar, em si, como pensar simplesmente, que o afligia, mas o ter a consciência de que ninguém que ele conhecesse o fazia como ele, o ter a certeza de que o não podia partilhar com ninguém.
E um dia, o seu desejo consciente realizou-se: durante o sono, sonhou que um anónimo feiticeiro lhe atendera ao pedido da transformação, dizendo-lhe que, para voltar à forma humana, só o precisava de pensar e tal aconteceria. A partir desse momento foi cão, em sonhos. Mas numa coisa ele não pensara, talvez por a idade não o ter permitido: ele, ao pensar como um cão, estaria privado das capacidades lógicas e cognitivas características do cérebro humano, logo, não poderia entender a forma como ‘’pensava’’, como cão. Para poder analisar e perceber o que quer que fosse, tinha que pensar como ele, humano, e, pensando assim, não entenderia à mesma, pois não estaria a “pensar” como um cão. Subordinado a isto está o facto de ele, ao ser um cão, ao pensar como um cão, não ter a noção disso e, assim, não poder sequer sentir a vontade de voltar a ser humano. E agora era cão no sonho, ao qual o seu corpo se rendera, pois o seu cérebro perdera a noção do que era real ou não, deixara de distinguir o imaginário do palpável, vivendo agora num devaneio falacioso – como são todos os sonhos – que o transformara, imaterialmente, num cérebro primitivo, canino. A vida de Eugénio era agora o que sonhava, e ele sonhava que passeava pela rua, comia ossos e lutava com outros cães.
Passou dias a dormir, semanas, meses. No hospital, este caso foi recebido como uma pérola rara e feito objecto de estudo pela comunidade médica, que se meteu num labirinto sem saída, como que tentando agarrar uma borboleta que no ar se dissipara, tentando compreender o impenetrável. Os pais passavam as noites e os dias a olhar as pálpebras do menino, que vibravam numa cara onde uma suave expressão alegre permanecia, e choravam, vendo ir-se a esperança de as voltarem a ver abertas. O menino estava mais feliz que nunca, num corpo de cão, num mundo virtual. Vira-se livre de todas as ideias que lhe apoquentavam o espírito, sem disso ter noção, apenas uma memória muito abstracta e vaga sobre a qual não podia reflectir. Apenas via, sem perceber, o seu “passado”, o seu real, e abanava a fantástica cauda, sempre satisfeito, sempre alegre.
Já não pensava na morte, não sabia o que isso era. Mas foi passado pouco mais de um ano que morreu, no sonho, atropelado por uma carrinha. Nesse momento, o seu coração humano, já não mais que um instrumento do ideal, parou. Os médicos apontaram a hora do óbito, indiferentes defronte do sofrimento dos pais, que tantas vezes quase o desejaram, e o menino deficiente, Sousa Mais, chorou.»

Em Se a Lua Viesse de Manhã

domingo, 10 de outubro de 2010

Velho

"Entre as vozes profissionais

Anónimas e a anónimos dirigidas

Vi, desta, tão pouco minha, cama

O vulto de alguém conhecido

Para quem olhei com emoção

E com a saudade de um dia

Nunca sentida em anos

Com a tristeza que o tempo me impingiu

Quase imortal

Com algumas efémeras intermitências

Que agora sinto e sei

Só morrerão comigo.


Já não vivo, já mal existo

Já nem me consigo arrastar

Sou como um cão num cárcere

Que morre se quem o acompanha

O deixar de acompanhar.

Alheio à sua vontade

Preso, dependente.

Dependência, essa

Que agora sinto e sei

Só morrerá comigo.


E o vulto, meu sangue

Mostrou seus traços

Que diferentes seriam

Não fosse eu o avô.

Não seria minha neta, então.


Neta que já dependeu dos pais, dos avós

De quem o avô depende hoje

De quem dependerão os filhos

Antes da situação se inverter.


A felicidade de outrora

Só em raros momentos

Entre choros e sofrimentos

Põe a cabeça de fora

Incorporada nos meus próximos

Que sofrem comigo

E, assim, vai sobrevivendo

Falaciosa.


O meu organismo, que a morte ataca

Desde que a primeira célula se dividiu

É hoje um quase vegetal

Velho

Que as máquinas e as drogas comprimidas

Mantêm “vivo” e triste

Adiando o irremediável sono

Que me fará esquecer.


A esperança não morre por último

Que por último morrerei eu

E a esperança já morreu.

E comigo, serão comidas pela terra

A tristeza, o sofrimento e a doença

Que me atacam, fatalmente

Atacando-se também a si.


E, agora, tenho à minha frente quem me resta

A minha neta, o meu futuro

A minha felicidade

Que agora, enchendo-me de lágrimas tristes e felizes

Sinto a reconfortante certeza:

Não morrerá comigo."


em Se a Lua Viesse de Manhã

domingo, 3 de outubro de 2010

O Tempo

"Não são os calendários

Não são as datas ou os ponteiros

Não é a repetição da rotatividade da terra

Originária das intermitências da luz

Isso é rotina.


É, sim, uma bacia cheia

De onde, pelo gargalo, se esvai a água

Até à secura;

É sim a cinza a tomar a mortalha

Até transformar em beata

Um cigarro que nunca o voltará a ser;

É a queima irreversível de um manuscrito

E a observação das suas letras esboroando-se;

É uma flor a degradar-se

Se lhe dispensarmos algum tempo de observação

Até a vermos murcha, qual uva tornada passa;

São olhos que choram vendo-se espelhados

Na oxidação de uma maçã;

São os traços que se desenham nas faces,

As circunvalações que se formam nas mãos,

A visão que vê partir a nitidez

Deixando de nos permitir observar

Com a precisão de outrora

Que é uma falha no céu

Onde um dia houve uma estrela e outro dia aparição;

Que é um cartaz ou um mural

Antes vivo e colorido

Agora russo e carcomido.

É a infinitude do Universo

É, sim, a rotatividade da terra

Das intermitências da luz originária

Mas numa mais abrangente visão

Em que o Sol não é mais o Sol do Big-Bang

Pois é vivo e vítima também;

Somos nós com o cansaço que nos corrói

Os órgãos que se tornam trôpegos

A tosse que percorre as nossas vias entupidas

A memória e a lembrança

A melancolia e a saudade

A esperança no depois

Seja qual for o depois.


É tudo


Uma bacia, um cigarro

Um manuscrito e uma flor

Uns olhos, uma maçã e uma uva

Os traços e as circunvalações

Uma estrela desaparecida

Um cartaz ou um mural

A rotatividade da terra

Nós, as vítimas

A vida, a morte

O tempo."


em Se a Lua Viesse de Manhã