I
Vivemos numa caverna
Em que olhamos sombras do que somos
Desconhecendo-nos a nós e à luz que se nos incide
Tão verdadeira como a água que naturalmente corre
Tão autêntica como nós, na nossa raiz
Como nós, radicalmente
Sou radical por quase me rasgar as veias o desejo de conhecer o fundamento de tudo
Por quase me fazer explodir a cabeça a ânsia latejante de tocar a verdade
Como se fosse carne viva
E apagar a sua sombra da frente dos nossos olhos
II
Quero dar-vos as mãos desacorrentadas
E sair a correr pelo mundo
Completamente nu, de roupas e preconceitos
Apagando fogueiras, espalhando cinzas
Destruindo prisões, tanques, armas
Coletes à prova de bala
Centros comerciais, edifícios que são a própria sombra
Tudo o que não passar da sua ridícula e ilusória sombra
Tudo o que sendo sombra nos mantém acorrentados nesta caverna mesquinha e falaciosa
Quero prosseguir, correndo
Limpando os destroços ao lado dos meus irmãos
Que voem!
Depois, quando finalmente respirarmos e tivermos o que originava os contornos negros do que nunca havíamos visto
A terra respirará connosco
E quero sentir a sua pureza
Tocá-la
Beijá-la
Rebolar-me em mantos de neve
Ou campos de flores de todas as cores do espectro
Quero nadar em límpidas águas
Quero que todos os aromas naturais do mundo
Se me entranhem nas células olfactivas
Quero abrir campas e libertar ossadas
Cagar para os seus espíritos e sombras
Mijar em céus e em infernos
E dançar com elas em memória do que foram
Pela vida! Quero ser livre, quero olhar o céu como céu azul
E construir o céu dos intrujões aqui, na Terra
Alcançar a felicidade enquanto existo
Quero voar
III
E quando isso acontecer
Tudo o que estava para trás será uma laracha
As sombras que vemos são as nossas palas
E só podemos dar-lhes importância até vermos aquilo em que incide a luz
Até vermos a luz
Até conhecermos a vida
Nesse momento
Não haverá rugas que destruam a felicidade dos nossos olhos
Não serão necessários dentes brancos à beleza incandescente de um sorriso
E nem o Sol, nosso amigo de sempre, nos será hostil, porque até ele nos olhará nos olhos
Mas, feliz ou infelizmente
Que à nossa montanha venha, não há Maomé
E só quando se desacorrentarem, se despirem, e derem as mãos até com cuspo
Lá chegaremos, pelo nosso pé.