domingo, 3 de outubro de 2010

O Tempo

"Não são os calendários

Não são as datas ou os ponteiros

Não é a repetição da rotatividade da terra

Originária das intermitências da luz

Isso é rotina.


É, sim, uma bacia cheia

De onde, pelo gargalo, se esvai a água

Até à secura;

É sim a cinza a tomar a mortalha

Até transformar em beata

Um cigarro que nunca o voltará a ser;

É a queima irreversível de um manuscrito

E a observação das suas letras esboroando-se;

É uma flor a degradar-se

Se lhe dispensarmos algum tempo de observação

Até a vermos murcha, qual uva tornada passa;

São olhos que choram vendo-se espelhados

Na oxidação de uma maçã;

São os traços que se desenham nas faces,

As circunvalações que se formam nas mãos,

A visão que vê partir a nitidez

Deixando de nos permitir observar

Com a precisão de outrora

Que é uma falha no céu

Onde um dia houve uma estrela e outro dia aparição;

Que é um cartaz ou um mural

Antes vivo e colorido

Agora russo e carcomido.

É a infinitude do Universo

É, sim, a rotatividade da terra

Das intermitências da luz originária

Mas numa mais abrangente visão

Em que o Sol não é mais o Sol do Big-Bang

Pois é vivo e vítima também;

Somos nós com o cansaço que nos corrói

Os órgãos que se tornam trôpegos

A tosse que percorre as nossas vias entupidas

A memória e a lembrança

A melancolia e a saudade

A esperança no depois

Seja qual for o depois.


É tudo


Uma bacia, um cigarro

Um manuscrito e uma flor

Uns olhos, uma maçã e uma uva

Os traços e as circunvalações

Uma estrela desaparecida

Um cartaz ou um mural

A rotatividade da terra

Nós, as vítimas

A vida, a morte

O tempo."


em Se a Lua Viesse de Manhã

2 comentários:

  1. Dos melhores poemas que escreveste :) Na minha opinião claro ! @

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  2. Sim senhor...não estava a espera de outra coisa vindo de ti. A pratica faz a perfeição e tu um dia, talvez chegaras lá mas, da tua maneira!

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